quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Crônica 2: Quintal grande, coração pequeno

No portão da casa, quem nos recebe é o cachorro, enorme e marrom. Assustador no tamanho, mas amigável na atitude. Ele tem por companhia um cachorro bem menor, que não faz questão de chamar a atenção de quem chega. O terreno é grande, acomoda casas e também uma grande área verde. Tem muita planta. Muita mesmo. Árvores, flores, frutas, cores, aromas e sombras. É um quintal generoso.


Em uma parte do quintal, protegida por um telhado e um muro baixinho, sentada em uma cadeira, está uma idosa. Ela é a dona da casa. Com seus cabelos bem grisalhos, pele muito branca, ela fala um tanto e chora um pouco. Fala mais e algumas lágrimas teimam em verter de seus olhos. Fala mais um tanto. Fala sobre ter com quem falar. Ela quer é prosear.

Queixa-se de solidão, ali sentada, com a paisagem verde exuberante de fundo.

Sua família é bem pequena, ela explica. A mãe faleceu há pouco mais de um ano, pelo que se lembra. Ou seriam dois anos? Era já bem idosa e precisou de muitos cuidados, ofertados pela filha única. Ela conta que viu a mãe morrer, sendo essa despedida muito traumática.

Ainda lhe sobram tios, bem velhinhos, que moram na cidade, contudo não estão perto.

Um único filho ela colocou no mundo. Ele tem uma companheira e uma filha de quatro anos com ela. Eles residem ali mesmo, na casa dela. 

Ainda assim, ele lhe é distante...

Chorando, ela explica que não enxerga mais muita coisa. A catarata lhe levou a visão. Sua dor é depender dos outros para os mínimos afazeres cotidianos, ela revela. E chora.

A nora também chora. Não pediu para cuidar de uma idosa que nem mesmo é a sua mãe. Não tem a obrigação, ela diz.

No último final de semana, o casal e a filha fariam uma pequena viagem. Um respiro e um tempo apenas para eles. Haviam até conseguido quem cuidasse da idosa! Mas o programa de sábado mesmo foi acionar o SAMU para idosa e acompanhá-la ao pronto-socorro. Seu “açúcar no sangue” caiu vertiginosa e misteriosamente. Talvez tenha comido muito pouco antes injetar a insulina, cogita a idosa. Quem sabe?

Há quem diga que foi proposital...

Verdade é que o ressentimento anda solto ali, naquele quintal exuberantemente verde.



sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Crônica 1: Transbordando de si

 

 

Em uma sala ampla e bem aconchegante, em um chalé de madeira simples, uma adolescente senta-se no sofá, na companhia de seus três visitantes. Dentre estes, ela só conhecia previamente um. Mas isso não a inibe.

De pequena estatura, ao sentar-se no sofá, seus pés não tocam o chão. Usa um tênis All Star lindo, azul céu. O casaco é largo e os punhos são segurados com intensidade em suas pequenas mãos. Suas unhas mostram resquícios de um esmalte escuro, talvez preto. Que combina com o casaco preto, de três listras brancas. Seus cabelos são escuros, com pontas vermelhas, cacheados. Suas mechas são constantemente ajeitados para detrás das orelhas, sem que suas mãos soltem os punhos do casaco.

Sua fala é rápida, intensa. Jorra como uma fonte jovial. Ela vai e vem. Os visitantes se esforçam em acompanhar aquelas palavras tão cheias de sentimentos e ideias. Mas ela é mais veloz que eles. Seus temas dão um nó, pululando de um lado para o outro. Seu vocabulário é maduro. Suas convicções também.

Como pode alguém tão jovem ser tão coerente na incoerência de tentar falar na mesma velocidade com que pensa?

Ou deveria ser sempre assim?

Mas não apenas palavras jorram daquele rosto bonito. Também vertem-se lágrimas daqueles olhos vivazes. Elas vêm e vão. Misturam-se às palavras, às ideias, ao fluxo de sentimentos.

Há quase um congestionamento em tanto sentir. O nariz escorre. Ela se define como “ranhenta” e cogita se estamos desconfortáveis com isso. Mas ri em seguida. Os três visitantes estão tão hipnotizados e cativados naquela narrativa veloz e fértil, que nem se apercebem.

A voz é de menina, um timbre doce, por vezes estridente, trêmulo e muito transparente. Ela é toda transparência, aliás. Nas dores, amores, rancores, temores.

A dor pela perda do pai ainda arde. Mesmo após oito anos passados. Ele era seu guardião e fazia por ela coisas que ninguém mais faz nem sabe fazer, explica ela.

A mãe e a irmã lhe inspiram um carinho imenso. Sua voz se torna protetora e suas palavras preocupadas.

A avó lhe perturba, com excessos de exigências e expectativas.

O futuro lhe atrai e também assusta. Parece destemidamente frágil diante da vida e dos três visitantes.

Cai o muro do cemitério

Ou Crônica de uma segunda-feira chuvosa   Segunda-feira cinzenta e chuvosa. Umidade. Fazia um pouco de frio. No WhatsApp, estava l...