sábado, 29 de janeiro de 2022

O emprego (curta-metragem)

O curta-metragem argentino El Empleo (O Emprego, The Employment), lançado em 2008, foi escrito por Patricio Gabriel Plaza e dirigido por Santiago ‘Bou’ Grasso. Com 6 minutos e 38 segundos de duração, o curta já coleciona mais de 100 prêmios internacionais. A animação foi realizada no estúdio argentino de animação opusBou

 


 

“O filme foi uma produção independente, e levou dois anos para ser finalizado. No total, 8.600 desenhos foram feitos à mão para a animação em 2D, inseridos nos fundos em aquarela.” [1]

A sinopse é curta e direta. "Um homem realiza a sua rota habitual para o trabalho, imerso em um mundo onde a 'utilização' de pessoas é uma coisa diária".

A pequena obra não possui diálogos ou trilha musical. O ritmo é ditado pelos ruídos cotidianos e banais.

Logo no início, o curta nos convida a acompanhar a rotina de um homem comum e, sutil e casualmente, nos expõe a corpos humanos substituindo objetos do cotidiano, em um processo de coisificação extremo.

O estranhamento é imediato. A angústia também.

O que se passa? Vai acontecer algo extraordinário a partir daí?

No desenrolar do curta, vai se mostrando um cotidiano miserável, esvaziado e mecanizado. A obra choca pela crueza com que exibe as engrenagens da vida ordinária. Mais e mais corpos humanos são utilizados das formas mais (im)pensáveis, mais humilhantes que (não) se pode imaginar.

Há um desfile de situações de desumanização...

 


 

Que valor nós temos? Como valorizamos (ou não) (o trabalho do) o outro?

Diante da exibição deste vídeo junto a trabalhadores da saúde, o efeito é imediato. Ele é um ótimo disparador de diálogos acerca dos processos de trabalho em saúde, dos modos da gestão agir e se manifestar, das relações com o público atendido.

Temas como alienação e exploração do trabalho podem ser abordados na sequência. As relações com e de trabalho podem ser colocadas em discussão em processo reflexivo.

A obra está disponível no YouTube. [2]

Para uma discussão mais aprofundada deste material, há muito material de origem acadêmica na internet. Particularmente, recomendo este artigo de 2021, da revista Humanidades em Diálogo, Trabalho e convívio cotidiano: a representação da vivência do tempo pela sociedade capitalista no curta-metragem El Empleo, de Adriana Carneiro Marinho (Universidade de São Paulo). [3]

Para pensar numa atividade que use mais do que o diálogo como estratégia, sugiro uma espiada nesta ideia, que descreve um exercício após a exibição do curta-metragem. [4]

 

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[1] Fonte: [Wikipedia] - https://pt.wikipedia.org/wiki/El_Empleo

[2] https://www.youtube.com/watch?v=cxUuU1jwMgM

[3] https://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/159194/170425

[4] https://raple.fclar.unesp.br/espanhol/curta-metragem-el-empleo-the-employment/

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Tomar café, subir na laje...

 Uma crônica sobre o que pode ser o cotidiano na Saúde da Família... Se você estiver disposta!

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Hoje foi dia de retomar o acompanhamento a uma família do território. Saímos para uma visita domiciliar, numa manhã nublada e extremamente abafada.

Aproximar-se desta família é nunca se deparar com o rotineiro ou o ordinário.

De início, o caminho é comum, vielas com escadarias, muitas curvas e sobe-desce, típico de morros. Depois o trajeto se torna uma trilha, pisando no mato e em terra, por caminhos sinuosos de pedras com limo. Muitas árvores avançam sobre a trilha, derramando sombra, folhas e flores pelo chão. A vista é exuberante, mas não se pode deixar de notar a presença de muito lixo, contribuição indesejada de alguns moradores locais.

 

No caminho, nos deparamos com uma massa de trabalhadores uniformizados-alaranjados, cuidando da limpeza do local. À medida em que eles abriam espaço para nossa passagem, entoávamos cadenciada e repetidamente “bom dia”.

Ao chegarmos ao portão da casa, já fomos recebidas pela jovem mulher entusiasticamente. Ao entrar no quintal, logo percebemos um novo habitante, um gato branco e cinza, de olhos amendoados.

Fomos conduzidas à cozinha, como também aconteceu na primeira vez. É um espaço pequeno, mas em que nos sentimos bastante acolhidas. É como estar no coração daquela casa. Lá, tinha uma água para ferver, um bule e um coador. Fomos incluídas no café da família, assim, sem nenhuma cerimônia. Os filhos foram aparecendo e se acomodando entre as mulheres.

A água demorou a ferver e deu tempo de ouvir um tantão de histórias, desde a última vez que a vimos. Ela falou sobre si e os filhos, que haviam acabado de acordar e tentavam se acostumar com nossa presença.

O café foi caprichosamente coado e ela lavou demoradamente os copos antes de nos servir. As visitantes saíram para o quintal, cada uma com seu copo de café fumegando. A anfitriã preferiu nos acomodar ali, um espaço totalmente cercado de verde, com uma vista em que as folhas das árvores parecem pintadas no céu azul.

Tendo o gato por companhia, as visitantes aguardavam. Chamou a atenção uma escada, que não estava ali antes. Feita em madeira rústica, bem larga e sem corrimão, ela estava presa ao piso com cimento e alcançava a laje da casa.

Quando a jovem mulher saiu, nos convidou a subir na laje. Em meio a risadas, subimos vagarosamente. Ela estava animada para nos mostrar o espaço. A vista era de tirar o fôlego. Estávamos envolvidas pela encosta do morro, com sua mata, repleta de árvores das mais variadas espécies, com folhas, flores e frutos se exibindo ao alcance das mãos. Um pica-pau passeava discretamente em um galho. Dava até para esquecer que estávamos no alto de uma casa.

Ela compartilhou como se sente ao subir ali e admirar a vista, explicando o quanto chega perto do céu. Naquele momento, ela relatou que chora e ri naquele refúgio, tendo os astros por testemunha.

A jovem mulher é daquelas que transbordam. Tipo leite fervendo na panela, quando se vira as costas.

 

Descemos e nos acomodamos no quintal. A temperatura era amena, havia uma leve brisa soprando. O café estava no ponto certo a esta altura. O trio se acomodou em cadeiras plásticas para conversar, tendo como ouvinte o gato. Ele nos ignorou por muito tempo e depois se aproximou, tentando em um salto frustrado alcançar a mesa. Miou perto da anfitriã, parecendo exigir mais atenção.

A jovem abriu-se sobre acontecimentos da vida recente. Relatou problemas que atingem muitas mulheres. A criação solitária dos filhos, que obriga, em meio a toda uma sorte de afetos e dilemas, lidar com todas as nuances de pequenos seres em desenvolvimento. Os desafios da inserção no mercado de trabalho e suas armadilhas de exploração e precariedade. Os relacionamentos amorosos com homens indecisos e que não chegam nunca à maturidade, apenas vão juntando anos de idade.

Também nos contou suas conquistas recentes, silenciosas e solitárias, que naquele momento encontraram ouvintes atentas, que genuinamente se alegraram com as novidades.

Pensamos juntas em suas alternativas e como poderíamos ajudar sua família. A delicada arte do cuidado na Saúde da Família, que é pensar esse cuidado junto aos próprios usuários.

Pelo mesmo caminho que percorremos, surgiu um grande cachorro, preto com um toquezinho de branco nas extremidades. Ele veio circular entre a gente, fazendo questão de ser visto. Recebeu uma generosa cota de afagos, parecendo satisfeito.

Em meio à conversa, risadas e goles de café, o tempo parecia suspenso pela calmaria que nos cercava. Mas mais de uma hora havia se passado. Era hora de retornarmos para a rotina, por muitas vezes, sem verde, sem céu.

Na saída, a jovem nos acompanhou pela trilha... Queria ver o resultado da limpeza, explicou. Mas parecia querer prolongar a despedida.

Cai o muro do cemitério

Ou Crônica de uma segunda-feira chuvosa   Segunda-feira cinzenta e chuvosa. Umidade. Fazia um pouco de frio. No WhatsApp, estava l...