Uma crônica sobre o que pode ser o cotidiano na Saúde da Família... Se você estiver disposta!
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Hoje foi dia de retomar o acompanhamento a uma família do território. Saímos para uma visita domiciliar, numa manhã nublada e extremamente abafada.
Aproximar-se desta família é nunca se deparar com o rotineiro ou o ordinário.
De início, o caminho é comum, vielas com escadarias, muitas curvas e sobe-desce, típico de morros. Depois o trajeto se torna uma trilha, pisando no mato e em terra, por caminhos sinuosos de pedras com limo. Muitas árvores avançam sobre a trilha, derramando sombra, folhas e flores pelo chão. A vista é exuberante, mas não se pode deixar de notar a presença de muito lixo, contribuição indesejada de alguns moradores locais.
No caminho, nos deparamos com uma massa de trabalhadores uniformizados-alaranjados, cuidando da limpeza do local. À medida em que eles abriam espaço para nossa passagem, entoávamos cadenciada e repetidamente “bom dia”.
Ao chegarmos ao portão da casa, já fomos recebidas pela jovem mulher entusiasticamente. Ao entrar no quintal, logo percebemos um novo habitante, um gato branco e cinza, de olhos amendoados.
Fomos conduzidas à cozinha, como também aconteceu na primeira vez. É um espaço pequeno, mas em que nos sentimos bastante acolhidas. É como estar no coração daquela casa. Lá, tinha uma água para ferver, um bule e um coador. Fomos incluídas no café da família, assim, sem nenhuma cerimônia. Os filhos foram aparecendo e se acomodando entre as mulheres.
A água demorou a ferver e deu tempo de ouvir um tantão de histórias, desde a última vez que a vimos. Ela falou sobre si e os filhos, que haviam acabado de acordar e tentavam se acostumar com nossa presença.
O café foi caprichosamente coado e ela lavou demoradamente os copos antes de nos servir. As visitantes saíram para o quintal, cada uma com seu copo de café fumegando. A anfitriã preferiu nos acomodar ali, um espaço totalmente cercado de verde, com uma vista em que as folhas das árvores parecem pintadas no céu azul.
Tendo o gato por companhia, as visitantes aguardavam. Chamou a atenção uma escada, que não estava ali antes. Feita em madeira rústica, bem larga e sem corrimão, ela estava presa ao piso com cimento e alcançava a laje da casa.
Quando a jovem mulher saiu, nos convidou a subir na laje. Em meio a risadas, subimos vagarosamente. Ela estava animada para nos mostrar o espaço. A vista era de tirar o fôlego. Estávamos envolvidas pela encosta do morro, com sua mata, repleta de árvores das mais variadas espécies, com folhas, flores e frutos se exibindo ao alcance das mãos. Um pica-pau passeava discretamente em um galho. Dava até para esquecer que estávamos no alto de uma casa.
Ela compartilhou como se sente ao subir ali e admirar a vista, explicando o quanto chega perto do céu. Naquele momento, ela relatou que chora e ri naquele refúgio, tendo os astros por testemunha.
A jovem mulher é daquelas que transbordam. Tipo leite fervendo na panela, quando se vira as costas.
Descemos e nos acomodamos no quintal. A temperatura era amena, havia uma leve brisa soprando. O café estava no ponto certo a esta altura. O trio se acomodou em cadeiras plásticas para conversar, tendo como ouvinte o gato. Ele nos ignorou por muito tempo e depois se aproximou, tentando em um salto frustrado alcançar a mesa. Miou perto da anfitriã, parecendo exigir mais atenção.
A jovem abriu-se sobre acontecimentos da vida recente. Relatou problemas que atingem muitas mulheres. A criação solitária dos filhos, que obriga, em meio a toda uma sorte de afetos e dilemas, lidar com todas as nuances de pequenos seres em desenvolvimento. Os desafios da inserção no mercado de trabalho e suas armadilhas de exploração e precariedade. Os relacionamentos amorosos com homens indecisos e que não chegam nunca à maturidade, apenas vão juntando anos de idade.
Também nos contou suas conquistas recentes, silenciosas e solitárias, que naquele momento encontraram ouvintes atentas, que genuinamente se alegraram com as novidades.
Pensamos juntas em suas alternativas e como poderíamos ajudar sua família. A delicada arte do cuidado na Saúde da Família, que é pensar esse cuidado junto aos próprios usuários.
Pelo mesmo caminho que percorremos, surgiu um grande cachorro, preto com um toquezinho de branco nas extremidades. Ele veio circular entre a gente, fazendo questão de ser visto. Recebeu uma generosa cota de afagos, parecendo satisfeito.
Em meio à conversa, risadas e goles de café, o tempo parecia suspenso pela calmaria que nos cercava. Mas mais de uma hora havia se passado. Era hora de retornarmos para a rotina, por muitas vezes, sem verde, sem céu.
Na saída, a jovem nos acompanhou
pela trilha... Queria ver o resultado da limpeza, explicou. Mas parecia querer
prolongar a despedida.
Um dia produtivo, com café, sempre fica melhor. Assim como uma boa conversa! Dá pra ver em imagens na mente a paisagem, adoro!
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