segunda-feira, 27 de julho de 2020

Interstícios em tempos de pandemia

Conheço uma pessoa muito querida que usa muito a palavra interstício.
Essa palavra me soa bonita. Tem um quê de trava-línguas nela.

Interstício me lembra intervalo, vão...

Há tempos atrás, resolvi procurar pelo seu significado. E encontrei vários. Mas cito esses aqui: "intervalo que separa coisas contíguas ou parte de um todo" e "abertura estreita e longa" [1].

(Ficou curiosx? Faça sua consulta também!)

Então, acho que vivi um interstício entre o dia em que postei "Expressões sob a pandemia" https://caleidoscopioativar.blogspot.com/2020/07/expressoes-sob-pandemia.html e o dia de hoje.

Nem sei se é possível "viver" um interstício. Ou se ele é algo que acontece quando não estamos prestando atenção ao que está acontecendo ao nosso redor.

Mas, enfim, achei que a experiência de hoje valia esse registro.

Hoje pela manhã, realizei uma visita domiciliar. E ali, no primeiro encontro, no quarto, à "beira leito" como dizem na Saúde, tive que me apresentar para alguém, sob a máscara cirúrgica.

Sempre me sinto desconfortável com isso, sempre me desculpo porque nunca acho justo com a pessoa atendida que ela me conheça dessa forma.

Aproveito esses momentos, de incômodo, e reforço que a máscara se trata de um aparato para segurança de todos.

Desta vez, nesta manhã, ensolarada e fresca, essa pequena e singela introdução que tenho feito nos meus encontros com novos usuários, rendeu uma preciosa e inesperada resposta à reflexão contida no meu post "Expressões sob a pandemia".

Foi como a continuação de uma conversa que nem cheguei a travar com essa pessoa...

A resposta dela foi mais ou menos assim: "Já estou acostumada. A gente aprende a conhecer a pessoa pelos olhos... A expressão, se a pessoa está rindo... Tudo pelo olhar".

Lembrei de uma entrevista com Mia Couto [2], que li tempos atrás, em que ele diz "O espaço da poesia sempre foi encontrado nos interstícios..."

Hoje foi minha vez de encontrar essa pequena brecha de poesia em meu cotidiano de trabalho.

Já que falei em Mia Couto, deixo uma pequena frase dele [3], estampada em uma foto que tirei em outra ocasião de andanças nos territórios de morros aqui em Santos.





[3] Extraída do livro O Outro Pé da Sereia, https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14115
Intervalo que separa coisas contíguas ou partes de um todo

"interstício", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/interst%C3%ADcio [consultado em 28-07-2020].
Intervalo que separa coisas contíguas ou partes de um todo

"interstício", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/interst%C3%ADcio [consultado em 28-07-2020].

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Minha música, meus versos

Torcendo o tempo, volto lá pra 2019 e apresento uma experiência linda, que vivi com o público adolescente, na Atenção Básica.

Recebi um pedido de uma Unidade de Saúde da Família (USF) para fazer uma intervenção em um grupo de adolescentes mantido pela unidade, com encontros mensais. O evento seria em setembro, o mês de prevenção ao suicídio, também conhecido como Setembro Amarelo [1].

Naquele momento, estava bem recente pra mim o trabalho com os móbiles de letras de música, que podem ser vistos aqui https://caleidoscopioativar.blogspot.com/2019/12/o-que-sobrou-do-ceu.html e aqui https://caleidoscopioativar.blogspot.com/2019/10/normal-0-21-false-false-false-pt-br-x.html

Então resolvi adaptar essa ideia para pensar em uma oficina voltada para o público adolescente. Preferi fazer uma atividade mais lúdica, de uma certa leveza, para abordar sentimentos, ideias e o que mais surgisse no encontro, em formato de oficina.

Música. Móbile.

Sons. Versos.

Como tocar os adolescentes com essa atividade?

Brincar com músicas!

O percurso foi mais ou menos assim...

Matutei um tanto.

Pensei em selecionar músicas com letras expressivas, afetivas, provocativas. Brincar com os versos, escolher alguns para imprimir. Colar esses versos-papeis em cartolina, em diferentes formas geométricas, para a montagem de móbiles.

Os adolescentes “escreveriam sua própria música”, juntando os versos do modo que quisessem. Colando e enfeitando o móbile como desejassem.

Expus a ideia na reunião de equipe da USF para abrir para reflexão e sugestões. Neste momento, resolvemos que a equipe selecionaria as músicas e os trechos para a oficina. Também se definiu o nome da oficina, “Compondo minha música”.

No dia marcado, preparamos a sala, pensando em criar um ambiente o mais acolhedor possível.

Na porta, já havia uma pista do que se tratava o encontro...


Juntamos todos os materiais e enfeites que conseguimos: fitas, laços, flores, canetas hidrográficas, tesouras, colas, tintas, pinceis, figuras em E.V.A. Foi um esforço coletivo aqui, com muitas colaborações generosas 🙏. Todo o material ficou esparramado na mesa, de modo convidativo para exploração.


Armamos um varal com as letras completas de cada música, para que os adolescentes pudessem ler e se familiarizar, caso não conhecessem.



Ao fundo, as músicas selecionadas tocaram o tempo todo... 🎶🎵🎶🎵

A composição dos móbiles ficou por conta de cada adolescente, que foi compondo sua própria música.


O diálogo do encontro se deu a partir do pedido para que aqueles que se sentissem confortáveis lessem os seus versos prediletos. A partir dos trechos das músicas, discutimos sentimentos, ideias, medos, possibilidades, sonhos e tudo mais o que cabe num encontro com adolescentes...

Ao final, cada um levou seu móbile.


[1] https://www.setembroamarelo.org.br/

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Experiência e Afeto

Girando o caleidoscópio... chacoalhando a Caixa de Ativação.

Estava eu já desalentada pela falta de oportunidades e brechas para ações de EPS!

Mais uma vez, a pandemia... Por conta dela, atividades em grupo ficaram suspensas.

Os espaços em que costumava propor a EPS, como reuniões de equipe ou grupos de educação em saúde, foram interrompidos.

Suspensão...

Enquanto isso...

No Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Primária à Saúde (PRMAPS), da Secretaria Municipal de Saúde onde trabalho, promovemos encontros periódicos entre todos os atores (residentes, preceptores e tutores). Estes encontros, chamados de Compartilhando Experiências, são parte significativa da proposta pedagógica e acontecem desde o início do Programa, em março de 2018. Sempre ocorreram em formato presencial... até a chegada da pandemia e o impedimento de atividades em grupo.

Esta atividade da Residência passou para o formato online em março de 2020, tendo periodicidade quinzenal. Desde então, esse grupo, do qual faço parte no papel de preceptora, vem experimentando certa dificuldade em sustentar a proposta do espaço, em manter sua coesão e em aprofundar os vínculos entre os atores.

Como o espaço traz no nome a palavra “experiência” e os encontros sempre se deram com a circulação de múltiplos afetos, a ideia que começou a ser gestada foi o resgate da proposta original e seus diferenciais.

Mas como promover tudo isso em um encontro que há meses vem ocorrendo de modo virtual? Com um grupo que não teve convivência, em presença, o suficiente para se conhecer, que dirá construir vínculos...

A ideia foi ganhando contorno em momentos de trocas de ideias com outra psicóloga, tutora da Residência, e uma grande parceira 💖.

A parte que me coube foi a reflexão do tema da experiência e é este processo que será relatado.

De onde eu parti... De um monte de interrogações!

Como fazer falar?

Como fazer falar da experiência?

Como compartilhar uma experiência de modo a tocar o outro em uma reunião virtual?

Aprendi que reuniões virtuais com muitos atores podem levar a muitas ilhas de silêncio... (!)

Esta atividade seria desenvolvida em um encontros "menor", contando apenas com tutores e preceptores. Enquanto grupo de trabalhadores, muitos já se conheciam e, mesmo que não, todos têm um “lugar em comum” que é o trabalho na Atenção Básica, na Saúde da Família, especificamente. Matéria-prima não falta, concluí.

Pensei em “cenas”. Pedir relatos de cenas reais, vividas no cotidiano de trabalho, que eles tivessem vontade compartilhar com o grupo.

À certa altura, comecei a pensar que a atividade poderia desembocar num momento um tanto burocrático e mais parecer uma “lição de casa”. Além do quê, nem todos se sentem confortáveis em trabalhar com a escrita ou em pensar numa narrativa.

E, na ideia seguinte, pensei em fotos, que também é um tipo a captura de uma cena.

A partir dessa ideia, decidi cuidar da preparação do encontro, marcado para uma sexta-feira à tarde, por meio de um convite.

 

Considerando que estaríamos numa sexta-feira à tarde, com cerca de 20 trabalhadores da linha de frente de saúde, me preocupava que a atividade transcorresse do modo mais leve possível.

A atividade consistiu em convidar os presentes a relatar a cena ou expor a foto escolhida. A maioria escolheu compartilhar foto, seguida de relato da cena.

As cenas foram muito ricas, detalhadas, vívidas e abordaram temas muito diversos, como histórias vividas com usuários acompanhados, relações com os residentes, possibilidade de formação em serviço, território, grupalidade e muitos outros.

Esse exercício de exposição de fotos e relatos formaria a base da discussão de um sentido possível para a palavra “experiência”. Os referencias teóricos que selecionei foram os artigos Notas sobre a experiência e o saber da experiência, de Jorge Larrosa Bondía [1] e Educação e trabalho em saúde: a importância do saber da experiência, da EPS em Movimento [2].

Em seguida aos relatos, fiz uma breve exposição de três trechos do artigo de Bondía, apenas para complementar aquilo que tínhamos acabado de vivenciar.

E assim foi quando abracei o desafio de promover uma atividade de EPS online, por videoconferência, pela primeira vez.








segunda-feira, 6 de julho de 2020

Expressões sob a pandemia

Há meses, em meio à pandemia da COVID-19 e ao aumento de pacientes internados em leitos hospitalares, tem se multiplicado notícias de que médicos e enfermeiros estão utilizando fotos de seus rostos em forma de um crachá para que possam ser “conhecidos” por aqueles a quem prestam cuidado. [1]

Essa é uma dimensão da pandemia que nos remete diretamente às obras de ficção, em que pessoas em “trajes de astronauta” tomavam à frente de todas as ações e decisões, diante de uma crise envolvendo risco biológico (ou alienígena!).

Mesmo fora do ambiente hospitalar, essa realidade do uso obrigatório de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para os profissionais de saúde tem impactado nas relações com os colegas e usuários dos serviços.

Como superar a barreira da máscara, touca, avental e possibilitar as trocas afetivas no momento do encontro nos serviços de saúde ou nas casas que visitamos?



Essa pandemia tem nos desafiado a reinventar técnicas, expressões e jeitos, tanto nas relações pessoais como profissionais.

Atuando como psicóloga, no SUS, na Atenção Básica especificamente, continuo trabalhando nas unidades, atuando junto a outros profissionais, dando prosseguimento a atendimentos dos usuários e atendendo novos casos também.

Cotidianamente, está posto o desafio de estabelecer conexões para além dos EPI obrigatórios e essenciais para a segurança de todos.

Com as barreiras impostas pela COVID-19, como compensar o distanciamento que se impõe mesmo no momento do encontro? Essa questão se impôs desde o início da pandemia, com seus impactos nas redes de saúde.

O que nos torna humanos no encontro com o outro? A experiência tem me mostrado que é a presença. É o estar ali, naquele exato momento, junto com o outro, para além da mera presença física. Ali e não em outro lugar, em outro tempo, em outra sintonia. É o conviver com as inseguranças e os medos despertados nestes tempos sombrios, para estar com o outro.

O que nos torna reconhecíveis no momento do encontro? São as palavras? Os silêncios? O olhar? O sorriso? A voz? Os gestos? Um crachá?

Cada ida aos serviços, cada diálogo com outros trabalhadores, cada atendimento, cada visita domiciliar tem sido uma experiência única nos últimos meses. E a cada experiência, venho me permitindo experimentar diferentes modos-de-ser-e-estar com o outro, ainda que sob à sombra da pandemia.

A cada encontro, a voz se modulava diferente, os gestos se tornavam mais eloquentes ou recatados, a risada mais solta ou mais comedida, o corpo de inclinava mais ou menos, ora numa reverência, ora num esquivar.

Expandir. Recolher.

Mas estando sempre ali e não em outro lugar...

Por fim, em meio a esses encontros-experimentações, lembrei do pequeno-grande poema que compartilho a seguir...


Para ser grande, sê inteiro: nada

        Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

        No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

        Brilha, porque alta vive.

De Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, publicado em 1933.

 


[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/04/hospital-adota-novos-crachas-para-que-pacientes-com-coronavirus-conhecam-rostos-dos-profissionais-de-saude-ck9n48olq0088015n78o3loba.html

https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/05/21/profissionais-da-saude-fazem-crachas-humanizados-com-fotos-sorridentes-para-se-aproximar-de-pacientes.ghtml

Cai o muro do cemitério

Ou Crônica de uma segunda-feira chuvosa   Segunda-feira cinzenta e chuvosa. Umidade. Fazia um pouco de frio. No WhatsApp, estava l...